Quando há 10 minutos atrás se abateu o silêncio ensurdecedor sobre o facto do primeiro-ministro português assumir a autoria do que podem ser considerados crime estéticos e uma aberração cultural, pareceria lógico perguntar onde param os arquitectos portugueses.
Agora também urge perguntar onde eles param quando, numa espécie de projecção suicida das tendências vigentes entre a população portuguesa, é esperada uma participação de cerca de 15% nas eleições para a Ordem dos Arquitectos.
Falta de auto-estima da classe profissional? Falta de opções? Ou pura falta de interesse? Alguma coisa está certamente em falta.
Face a outras classes profissionais liberais que disputam árdua e publicamente aqueles que vão representar os seus destinos, os arquitectos portugueses espelham bem o estado corrente do país.
Não é de admirar que exista um absentismo absoluto. Com a explosão “democrática” dos cursos de arquitectura, os arquitectos deste país são hoje uma perfeita amostra demográfica do país que temos. E ainda bem.
Porém, o que é eventualmente mais grave é que, apesar da sua formação superior, os arquitectos podem, assim, estar a ecoar a cultura cívica – ou a crise social de que falava a Sedes – com que hoje contamos em Portugal.
Comecemos pela crise.
Não é de excluir a hipótese de que o absentismo eleitoral dos arquitectos se explica por razões bastante prosaicas. A maior parte dos arquitectos, nomeadamente os mais jovens e desfavorecidos da classe não votam porque... não pagaram as quotas!
E porque é que não pagaram as quotas? Porque estão desempregados ou porque são tão mal remunerados que tem naturalmente que remediar outras necessidades mais básicas. Interessante, não é?
Isto sugere imediatamente que, se estão verdadeiramente interessados na participação eleitoral, os candidatos aos órgãos nacionais da Ordem dos Arquitectos deviam acordar um pacto de regime súbito: uma amnistia – ou, ecoando a extraordinária flexibilidade legislativa portuguesa, uma alteração estatutária temporária – para permitir que todos votassem nestas eleições.
Adiante. Subsistem ainda algumas outras possibilidades para justificar o absentismo geral dos arquitectos.
Também é verdade que muitos dos 16.000 arquitectos a que me refiro estão no estrangeiro. Face a uma tendência autofágica da classe arquitectónica portuguesa – que também lembra outra coisa qualquer – muitos dos arquitectos recentemente formados decidiram, pura e simplesmente, emigrar.
Isto é, o investimento e a permissividade do Estado na formação superior desta classe traduz-se, como já acontecia com cientistas e outras especializações de ponta, em exportação de cérebros ou de mão de obra competente, enquanto por aqui nos vamos lamuriando de desordenamento do território. Interessante, não é?
Esta é, aliás, uma resposta à questão que dá título a este artigo que combina perfeitamente com o equívoco ético e estético que recentemente envolveu o engenheiro civil José Sócrates.
De facto, para quê pagar o custo dos serviços, dos recursos humanos e da competência técnica nas quais o Estado investiu os impostos dos contribuintes, se ainda há por aí uns chico-espertos que dão conta do recado e da paisagem?
Os chico-espertos – que às vezes até são arquitectos pois, afinal, eles também “andem aí...” – saem mais barato, têm uns contactos na Câmara local que “facilitam a coisa” e até foram os primeiros a perceber que mais vale fazer o gosto ao dedo do cliente, que isto não está para modas.
Mas, perguntar-se-á então, a arquitectura não estava na moda?
Depois da celebração e da celebridade de Siza Vieira e de Eduardo Souto Moura, os arquitectos não deveriam andar por aí felizes da vida?
Não adquiriram prestígio social e profissional?
Não obtiveram reconhecimento no “estrangeiro”?
Não tiveram, nos últimos 15 anos, maior exposição mediática interna do que médicos, advogados e engenheiros? Tendo eu realizado um doutoramento sobre a visibilidade da arquitectura em meios generalistas como o jornal O Público, posso assegurar que todas estas hipóteses são sustentadas e confirmadas por dados objectivos.
À excepção, claro, da parte da felicidade.
Curiosamente, em Portugal, a celebridade, a projecção e o prestígio não fertilizaram o campo. Deve ser uma característica endógena. Ou o facto de, apesar das aparências, sermos um país estruturalmente pobre.
As circunstâncias mudam e as conjunturas também e, depois de uma prolongada ascensão demográfica e mediática, os arquitectos portugueses parecem, de novo, ter desaparecido para parte incerta.
Apesar das campanhas do “direito à arquitectura” – já agora, algum não arquitecto ouviu falar disto? – os portugueses ainda não parecem estar dispostos a pagar a mais-valia do serviço arquitectónico.
Isto também justifica a ausência dos arquitectos.
E donde vem o problema? Será que os portugueses não valorizam ou não podem valorizar a sua qualidade de vida ao nível de outros países europeus? Será que não podem, pura e simplesmente, pagar os serviços de um arquitecto preferindo assim entregar-se assim às competências dos chico-espertos?
Será que têm de facto a sua própria cultura de gosto e preferem decidir por si? Ou será que a tabela de honorários dos arquitectos é desadequada à realidade do país? Ou serão as regras de mercado que estão a distorcer a oferta e a procura? Ou acontecerá, afinal, simplesmente, que os arquitectos deviam ser pagos por área a edificar e respectivo preço médio oficial de construção em vez de auferir em remunerações que flutuam com o preço final de obra – assim se acabando com muitos jogos de bastidores que prejudicam clientes e destinatários e assim se esvaziando também as distorções deontológicas que fazem com que seja um contrasenso económico para o arquitecto invistir tempo e recursos na redução de custos de obra do seu cliente?
Das mais gerais às mais prosaicas, estas, como muitas outras, são questões que justificam uma tomada de consciência e de posição dos arquitectos e dos seus legítimos representantes face à imagem que projectam de si próprios enquanto classe profissional.
Dado o contexto particular da nossa auto-proclamada “West Coast,” talvez os portugueses ainda não tenham percebido, de facto, qual o papel que a arquitectura pode desempenhar no seu dia-a-dia e na sua qualidade de vida colectiva.
Afinal, a maioria dos portugueses só sabem de longe da vã gloria dos centros culturais desenhados por arquitectos de “qualidade arquitectónica reconhecida” que, entretanto, tem as suas portas encerradas por faltas de verbas, programas e atractivos. E alguns mais iluminados só sabem que se tiverem dinheiro para investir em condomínios privados de luxo é bom que haja um “arquitecto de renome” envolvido.
Visto que assim já sabemos onde param os portugueses, onde param, entretanto, os arquitectos portugueses?
Onde param os candidatos a estas eleições da Ordem dos Arquitectos, esses que devíamos estar a ver e ouvir nos media de massa a exporem os seus programas, as suas opiniões públicas, as suas posições, as suas diferenças, as suas reflexões e proposições sobre o estado da prática da arquitectura em Portugal?
Onde param, neste preciso momento, as luminárias da arquitectura portuguesa, essas que prometeram mais intervenção crítica e social?
Onde param os críticos de arquitectura e os formadores de opinião, esses que, neste preciso momento, deviam estar a contrapor visões e perspectivas sobre o que precisa de mudar nos consensos excessivos em torno das vias únicas que actualmente caracterizam a arquitectura portuguesa?
E, para além dos emigrados, dos desenrascas e dos dignos representantes da geração rasca, onde param esses “ “jovens arquitectos” que constituem a maior parte dos arquitectos inscritos na Ordem e que agora se remetem, como é sua condição geracional mais vasta, a um silêncio comprometido com o status quo?
Por este andar, onde vão parar os arquitectos portugueses?