DEPOIMENTOS

MANUEL GRAÇA DIAS

VÁ VOTAR E VOTE A. ATÉ LÁ, DIVIRTA-SE (OU IRRITE-SE) COM ESTE TEXTO ("OS ‘GABINETES’") QUE ENCONTREI, RECENTEMENTE, AO REMEXER NO MEU PASSADO DE ESCRITA (PASTA #1984)

N.S.E.W.: pontos principais de proliferação de uma recente actividade que, num misto burotecnocrata, se foi insinuando sob o misterioso nome de "gabinete".

O esquema é aproximadamente o seguinte: pequena cidade de província, centro histórico, bairro do FFH, falta de casas para o crescimento populacional, isolamento há muito ultrapassado graças à televisão, pressão especulativa sobre terrenos urbanos ou de cultivo; dois jovens engenheiros que desistiram de Lisboa, onde estudaram; aluguer de armazém, compra de estiradores, máquinas de desenho, cestos de papéis e candeeiros com pequena ajuda paterna; inscrição na Câmara - montagem de "gabinete".

No "gabinete" trabalham três desenhadores, por exemplo. Uma manhosa raposa que é quem "verdadeiramente esgalha" os diversos processos de loteamentos, vivendas, parques de campismo, edifícios de apartamentos e escritórios e mais um traçado de troço de estrada que os engenheiros prometeram ao presidente da Câmara, já vão quase duas semanas, a troco de uma aprovação mais complexa.

Os outros dois são apenas copistas, rapazes que não conseguem acabar o 9º ano do curso unificado por mais noites em que se inscrevam na escola secundária local. Passam, com aparente aplicação, traços e mais traços sobrepostos e entrecruzados que o colega "projectista" lhes vai entregando.

Dominam, razoavelmente, um vocabulário "técnico" de tipo cabalístico: "placa", "corete", "vêgê" e "cópias heliográficas"; confundem ainda um pouco viga com pilar, mas esforçadamente "desenham" as suas malhas de ferro a escalas reduzidas. Para eles a arquitectura é aquilo: pára ali, em três desenhos a 1:100 grosseiramente representadores dos compartimentos de uma "vivenda".

Quando são julgados "aptos" pelo "chefe da sala de desenho" são, à boca pequena, convidados a integrar, ao fim do dia, o seu (dele) "gabinete".

É um sítio ainda mais sórdido e utilitarista que o dos engenheiros. Se estes, uma vez, colocaram nas paredes um calendário planning enviado pela Technal, no "gabinete" do desenhador apenas há lugar para uma fotocópia apressadamente humorística "você disse urgente? Ah-ah-ah!" e um calendário de barbeiro com uma airosa pin-up bárbara.

Mas há também uma máquina de cópias que empesta tudo com o cheiro a amoníaco. Aí, a coberto da noite, desenvolvem-se mais "vivendas", mais loteamentos, mais edifícios comerciais, mais básicos saneamentos, mais adaptações de construções existentes a centros sociais, projectos que lhes são canalizados por outro engenheiro, semiconcorrente, que trabalha na administração e que não teve "agressividade" para montar, ele próprio, uma dessas "estruturas".

Passados três meses os apáticos aprendizes são também eles um poço de conhecimentos. Nenhuma angústia, dúvida ou interrogação os assalta: o encontro dos muros, o perfil de uma cornija (?), a guarda em ferro de uma galeria, a dimensão desejável para uma janela virada ao vale, serão certamente coisas de gente maricas e "complicada" que o papel milimétrico posto por baixo não contém, provoca ou sugere.

Familiarizados no manejo do "tê" e das canetas de ponta fina, eis que eles próprios (definitivamente esquecido o curso nocturno) se lançam, audazes, na abertura de mais um outro "gabinete". E é um frenesim a virar plantas e vegetais (tudo se passando, afinal, num reino botânico extremamente esotérico) a disputar clientes e a despachar "moradias", passo burocrático e quase desnecessário, já que os donos das obras controlarão, no fim de contas, a feitura das casas, ultrapassada a fase em que elas são iguais (os toscos) para jogarem na pele, no revestimento, na textura e na cor (nos aspectos mais superficiais, na verdadeira acepção) os jogos de individualidade, diferença e representação a que têm direito.

A arquitectura, a boa, a antiga, a que resta, a que ainda não foi tapada pela sombra de nenhum "bloco de apartamentos", existe ainda um pouco por ali, numas moradias de 50, num solar barroco, numa esquina provinciana e linda do século XIX, num alto muro com roseiral tratado de uma pensão adaptada, num sanatório abandonado há quinze anos. Tudo muito velho e gasto, desbotado, isso-já-não-se-usa, tudo a precisar, numa palavra, de "ser passado a limpo", num "gabinete".



Manuel Graça Dias

1984. "Os ‘gabinetes’". Jornal de Letras Artes & Ideias (# 165). Lisboa: 3 de Setembro de 1985 [Texto inicialmente publicado em "O Sétimo Dia", suplemento semanal e cultural do jornal O Globo, Lisboa: 17 de Março de 1984]